Mãe dá chiclete de nicotina para adolescente parar de fumar vape; jovem está com enfisema aos 16
06/07/2024
(Foto: Reprodução) Tabagismo precoce causado pelo cigarro eletrônico tem levado médicos a receitar goma para ajudar menores de idade a driblar o vício. Recurso à reposição de nicotina só deve ser feito com orientação médica. Adolescentes usam goma de nicotina para tentar driblar vício em cigarro eletrônico
Ana* encontrou um cigarro eletrônico na mochila de sua filha, uma adolescente de 16 anos, estudante do 2º ano do ensino médio de uma das escolas de alto padrão mais tradicionais de São Paulo.
➡️ Cigarro eletrônico, também conhecido como vape ou pod, é um aparelho que aquece um líquido que se transforma em vapor e é tragado pelo usuário. A concentração de nicotina chega a ser 50 vezes maior do que a de um cigarro tradicional. Apesar de o produto ser encontrado em lojas, a venda é proibida no Brasil.
🔎 Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) com adolescentes de 53 países de Europa e Ásia Central e do Canadá mostrou que aos 13 anos, 16% dos adolescentes já haviam usado vape. Aos 15 anos, este percentual sobe para 32%.
A filha de Ana disse que queria parar de fumar. Sem saber o que fazer, a mãe comprou chiclete de nicotina a filha.
“Foi um desespero, na verdade, foi tipo ‘o que eu faço agora?’ Comprei e falei para ela me dizer se faz efeito ou não”.
A adolescente disse para a mãe que, com isso, conseguiu parar. No começo de junho, teve uma recaída ao ir uma festa. Nos dias seguintes, uma tosse persistente assustou a mãe, que a levou a uma pneumopediatra para avaliação.
Resultado: a tomografia do pulmão apontou o início de um enfisema pulmonar – doença tratável, mas sem cura, que destrói gradualmente as células do pulmão e é mais frequente a partir dos 40 anos (veja no infográfico abaixo).
“Eu fiquei bem assustada com a tomografia dela, um enfisema que a gente não costuma ver em uma menina de 16 anos de idade”, contou a pneumopediatra Marina Buarque de Almeida.
📋 Dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, mostram que a maior incidência de internações por Doenças Pulmonares Obstrutivas Crônicas, onde se enquadram os enfisemas, acontecem a partir dos 40 anos. Pacientes de 15 a 19 anos representam 0,6% do total de internações por conta dessa doença nos últimos 16 anos.
A
A filha de Ana, que nunca havia tido problemas respiratórios, agora faz uso regular de bombinha para asma e "vai ficar sem festa por um tempo”, afirmou a mãe.
Médica pergunta sobre uso de vape para pacientes a partir dos 11 anos
Marina Buarque atua como pneumopediatra há 26 anos. Nos últimos, passou perguntar sobre o uso do vape quando o paciente tem mais de 11 anos.
“Está muito normalizado entre eles o uso e isso que me preocupa”, afirma a médica.
O primeiro caso que a especialista atendeu em consequência do uso do cigarro eletrônico foi em 2019, quando um adolescente de 13 anos deu entrada na emergência do Hospital Sírio-Libânes com insuficiência respiratória.
O diagnóstico apontou Evali, sigla em inglês que significa lesão pulmonar associada ao uso de produtos de cigarro eletrônico, doença inflamatória que leva a insuficiência respiratória.
Marina diz que tem visto diminuir a idade de pacientes com problemas relacionados ao uso de cigarros eletrônicos. Antes, eram alunos do ensino médio. Agora, conta, têm chegado alguns do fundamental 2 (11 a 14 anos).
“A indústria do tabaco deve estar muito feliz porque ela sabe que o cara que começa a fumar com 12, 13 anos, estatisticamente tem uma chance muito maior de se perpetuar tabagista ao longo da vida”, disse a pneumopediatra.
Nessa faixa etária estão dois irmãos, uma menina de 12 e um adolescente de 14, que o pneumologista Fred Fernandes, membro da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia, recebeu em junho em seu consultório em São Paulo. Os dois estavam com sintomas de abstinência de nicotina.
A mãe contou que os filhos começaram a apresentar dificuldade de concentração, ansiedade, e ficaram irritadiços após a escola atuar contra o uso do vape nos domínios da instituição.
O médico recorreu à mesma medida usada pela mãe de Ana, a adolescente que queria largar o vape, e que tem se tornado comum nos consultórios de pneumologistas:
“Os orientei a utilizar a goma de nicotina para tentar diminuir estes sintomas”, contou Fernandes.
Goma de nicotina deve ser usada apenas com orientação médica
O médico Paulo César Corrêa, coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), ressalta que o uso da goma de nicotina deve ser feito apenas com orientação e acompanhamento médico.
Em seu consultório, em Belo Horizonte, ele conta ter receitado a goma para mais de 10 adolescentes com dificuldades para abandonar o vape.
“A vantagem da goma é porque ela é uma forma rápida de melhorar a fissura da pessoa”, disse Côrrea.
Antes de iniciar o tratamento, o especialista estabelece o que chama de Dia D para a mudança, a partir do qual o paciente não deve mais usar cigarro eletrônico. O especialista aconselha os pacientes a verificar bolsas, casacos e gavetas antes desse dia e descartar qualquer dispositivo que possa estar ao alcance.
“Um perigo muito grande, quando o médico prescreve a reposição de nicotina, é que tem que ficar claro que a pessoa não pode utilizar nenhum produto de cigarro eletrônico”, alertou o médico. 🚨 O risco é uma superdosagem de nicotina.
Corrêa esclarece ainda que o tratamento com a goma precisa ser associado a outros tratamentos, como terapia comportamental.
“Você está mexendo com a dependência química. A outra coisa é a dependência comportamental, que é todo o gestual de fumar, a outra coisa é a dependência psicológica", diz João Paulo Lotufo, coordenador do projeto antitabágico do Hospital Universitário da USP.
Em alguns casos, é preciso medicação.
Vício rápido e armadilhas do vape
Com aromas e sabores e a falsa percepção de que é apenas um vapor de água, os cigarros eletrônicos são extremamente atrativos para os adolescentes, explica Paulo Côrrea.
Por isso, avalia Lotufo, da USP, os vapes têm feito com que os problemas decorrentes da dependência de nicotina têm surgido com populações cada vez mais jovens.
“Os problemas de saúde gerados pelo cigarro vão acontecer também, mas pelo vape estão acontecendo mais precocemente”, alerta o especialista da USP.
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Gerações dos cigarros eletrônicos
Kayan Albertin/g1
*nome fictício para proteger a identidade da filha da entrevistada.